A língua falada no Sul do Brasil por antepassados de Gisele Bündchen e Rodrigo Hilbert que está desaparecendo

Como muitos das gerações posteriores, Gisele Bündchen e Rodrigo Hilbert não falam a língua dos trisavós Getty Images via BBC Se uma máquina do tempo perm...

A língua falada no Sul do Brasil por antepassados de Gisele Bündchen e Rodrigo Hilbert que está desaparecendo
A língua falada no Sul do Brasil por antepassados de Gisele Bündchen e Rodrigo Hilbert que está desaparecendo (Foto: Reprodução)

Como muitos das gerações posteriores, Gisele Bündchen e Rodrigo Hilbert não falam a língua dos trisavós Getty Images via BBC Se uma máquina do tempo permitisse à modelo Gisele Bündchen, ao goleiro Alisson Becker e ao ator Rodrigo Hilbert encontrar seus ancestrais vindos da Europa, seria necessária a presença de um intérprete. Caso o profissional escalado falasse exclusivamente o alemão padrão (Standarddeutsch), ainda assim a comunicação seria truncada. Como a maioria dos alemães que vieram para o Brasil no século 19, os Bündchen, os Becker e os Hilbert usavam cotidianamente um vernáculo diferente do idioma dominante na atual Alemanha. 📲 Acesse o canal do g1 RS no WhatsApp Tratava-se de uma variedade baseada no que os linguistas chamam de "continuum dialetal": uma série de formas assumidas por uma língua ao longo de uma região, com variações cumulativas à medida que a distância aumenta. Veja os vídeos que estão em alta no g1 Os antepassados dessas celebridades não chamariam sua língua de Deutsch (língua alemã, no alemão padrão), e sim Deitsch, Düütsk, Plattdeitsch ou simplesmente Platt (baixo-alemão ou Plattdeutsch). Assim era denominado o idioma falado na área delimitada pelos rios Mosela e Reno, nas imediações das cidades de Bingen, Trier e Koblenz, na Renânia Central, entre os atuais Estados da Renânia-Palatinado e do Sarre. Dessa região, conhecida como Hunsrück (pronuncia-se "runs-rík"), partiu a maior parte dos primeiros alemães a pisar em solo brasileiro. Por mais de 200 anos, o hunsriqueano ou Hunsrückisch ("língua do Hunsrück") foi transmitido de geração em geração no Brasil — onde surgiu, após transformações a partir do Platt. Ainda hoje, é utilizado por mais de 1,2 milhão de pessoas — população equivalente à do município de Campinas (SP) —, segundo o livro Inventário do Hunsrückisch como Língua Brasileira de Imigração (IHLBrI) (Editora Garapuvu, 2018). Há ainda comunidades que o utilizam na Argentina, Paraguai e Bolívia. Essa língua padece, no entanto, de um fenômeno comum a milhares de vernáculos minoritários: a perda linguística, quando um idioma deixa de ser usado, transmitido ou plenamente dominado. É por isso que nem uma engenhoca de ficção científica permitiria aos famosos mencionados no início desta reportagem — todos descendentes de alemães do Hunsrück e arredores — conversar com seus antepassados. Gisele, Alisson e Rodrigo não falam a língua dos trisavós. Universidade guarda coleção de raridades linguísticas O professor da UFRGS Cleo Vilson Altenhofen guarda o maior acervo de hunsriqueano do mundo Luiz Antônio Araujo/BBC News Brasil "Como uma língua subsiste por 200 anos sendo falada por poucas pessoas?", indagou o professor titular do Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Cleo Vilson Altenhofen ao receber a reportagem da BBC News Brasil, no final de setembro. Nos armários, prateleiras e caixas que abarrotam sua sala, há um tesouro: o maior acervo de hunsriqueano do mundo. São centenas de livros, cadernetas, cartas, diários, arquivos de áudio e vídeo, CDs, DVDs, fotos, cartazes, mapas, anúncios publicitários, roteiros, entre outros itens, neste idioma. Muitas das vozes contidas nesse emaranhado arquivístico já desapareceram, ecoando apenas nos registros preservados pela UFRGS. Não foi Altenhofen quem inventou o termo "hunsriqueano" para designar a língua de seus familiares, que chegaram a São Leopoldo (RS) dois dias depois do Natal de 1827. Ele foi o primeiro, porém, a fazer referência à variante hunsriqueano rio-grandense (Riograndenser Hunsrückisch) em sua tese de doutorado pela Johannes Gutenberg-Universität Mainz, uma universidade na Alemanha, em 1996. O termo ganhou até um verbete da Wikipédia. Com o projeto Escrithu, o professor capitaneou a formalização da ortografia, de regras gramaticais e do vocabulário do hunsriqueano. Também organizou, junto com Rosângela Morello, professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), o Inventário do Hunsrückisch como Língua Brasileira de Imigração. A obra, que mapeou uso consistente da língua em bastiões distribuídos no Rio Grande do Sul, em Santa Catarina e no Espírito Santo), levou a encaminhamento de um pedido de reconhecimento do hunsriqueano como referência cultural brasileira no Inventário Nacional da Diversidade Linguística (INDL). Entretanto, o INDL foi atingido em 2019 por um decreto presidencial que acabou com órgãos colegiados federais, como a Comissão Técnica do Inventário Nacional da Diversidade Linguística (CTINDL). Segundo o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), a conclusão do pedido sobre o hunsriqueano depende da criação de um Conselho Nacional de Políticas para a Diversidade Linguística (CNPDL), o que está em tramitação no Ministério da Cultura. "A Comissão é necessária para que se tenha condições técnicas para submeter a proposta de inclusão da língua Hunsrückisch (e de outras 25 línguas já inventariadas e mais 10 com pesquisas em andamento) no Inventário Nacional de Diversidade Linguística", explicou o IPHAN. Apesar de perceber a perda linguística em sua própria família, Altenhofen vê esse processo como algo natural Luiz Antônio Araujo/BBC News Brasil Atualmente, sete línguas obtiveram o reconhecimento: seis indígenas (asurini, guarani m'bya, nahukuá, matipo, kuikuro e kalapalo) e uma europeia (o talian, falado por migrantes da região do Vêneto, hoje na Itália). As línguas que recebem esse reconhecimento viram foco de ações de valorização por parte do Estado brasileiro. Nem mesmo um erudito como Altenhofen, de 62 anos, está imune à perda linguística. "Minha geração ainda teve a transmissão [do hunsriqueano]", observa, referindo-se a si próprio, aos dois irmãos e às duas irmãs. As filhas e sobrinhas do professor, por outro lado, são a primeira geração dos Altenhofen a não dominar o idioma dos ancestrais. "A estrutura social mudou: Porto Alegre [onde vive e trabalha] não é Harmonia [município do Vale do Caí onde cresceu, fundado por migrantes alemães], e as novas gerações vivem em um mundo em que o português está muito mais presente", reflete. Mas o pesquisador considera a perda linguística um processo natural. Ele não se preocupa com o aumento — como ocorreu com o hunsriqueano no Brasil no século 19 — ou com a diminuição do número de falantes, e sim com a transmissão, o que move seu trabalho. O desafio de ser filho de imigrantes e não falar a língua dos pais Os alfabetos à beira da extinção Na Alemanha, hunsriqueano é dialeto Segundo o Inventário do Hunsrückisch como Língua Brasileira de Imigração, o hunsriqueano é uma das 14 línguas alemãs do Brasil. Já na Alemanha, essa divisão não se aplica, explica Gilvan Müller de Oliveira, professor associado de Linguística da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e ex-diretor executivo do Instituto Internacional da Língua Portuguesa (IILP). Para o Estado alemão, existe uma única língua alemã, o alemão padrão, e dezenas de dialetos — incluindo o Pfälzisch, forma próxima do Hunsrückisch ainda hoje falada em certas partes do país europeu. "A formação do estado-nação na Alemanha, na Itália e em outros países europeus está baseada na ideia de uma única língua, legitimada no caso alemão pela Bíblia de Lutero, no italiano pela Divina Comédia, de Dante Alighieri, e assim por diante", explica Oliveira. O restante, afirma o linguista, são dialetos colocados em segundo plano e que tiveram sua transmissão interrompida ou dificultada por uma "ideologia de língua única". "Isso é exatamente o contrário do que nós estamos fazendo no Brasil", diz o professor. Altenhofen (na foto, à dir.) durante entrevista para o projeto Atlas Linguístico-Contatual das Minorias Alemãs na Bacia do Prata: Hunsrükisch (ALMA-H) Divulgação/Projeto ALMA-H/UFRGS Oliveira explica que classificar o hunsriqueano como dialeto do alemão faz com que este pareça descartável. "Temos de reconhecer a existência de várias línguas, como o alemão, o hunsriqueano, o pomerano, o vestfaliano, o bávaro, o suábio falado no Paraná e outras ilhas linguísticas reunidas no conceito de línguas alemãs", diz. Com essa política, o Brasil adota um curso inverso ao de boa parte de sua história, quando, segundo Oliveira, reprimiu os não falantes de português. No Estado Novo, regime ditatorial liderado por Vargas entre 1937 e 1945, o uso público de línguas estrangeiras e indígenas foi proibido. Um levantamento de Oliveira identificou 243 páginas de legislação federal e de leis em Santa Catarina que contribuíram com o combate à existência de várias línguas entre 1911 e 1963. Atualmente, de acordo com os entrevistados, o Brasil avançou bem em políticas governamentais — municipais, estaduais e federais — para a preservação da diversidade linguística, incluindo por exemplo esforços relativos às línguas indígenas. Por que tantos alemães migraram para o Brasil 200 anos atrás Os poloneses, japoneses e alemães que ajudaram o Brasil a chegar ao topo da produção de soja Em Nova Petrópolis, queda abrupta do número de falantes Em Nova Petrópolis (RS), município de 23,8 mil habitantes na Serra Gaúcha, o hunsriqueano é uma das variantes do alemão cotidianamente utilizadas pela população. O município foi um dos 41 pontos visitados entre 2017 e 2018 pela equipe de especialistas responsáveis pelo Inventário do Hunsrückisch como Língua Brasileira de Imigração. "Não é fácil manter o Hunsrückisch por múltiplas razões: as novas gerações não frequentam mais a casa dos avós, e sim creches, e estão muito influenciadas pelo inglês", afirma Célia Weber Heylman, de Nova Petrópolis. Professora aposentada de alemão (padrão), Célia testemunhou em sala de aula a queda no número de falantes. "Nos últimos anos, apenas um ou dois de cada 10 alunos falava alemão em família", relata. Como a maioria dos professores de alemão no Brasil, Célia vê o hunsriqueano como uma ponte para a aprendizagem do alemão padrão e de idiomas em geral — mas crê que o ensino deve ter por base o alemão padrão. Distante 46 quilômetros de Nova Petrópolis, o município gaúcho de Santa Maria do Herval é palco de uma experiência distinta. Em 2004, por iniciativa da linguista alemã Ursula Wiesemann, a localidade tornou-se laboratório de uma iniciativa inédita de valorização do hunsriqueano — chamado de Hunsrik nessa versão. Batizado de Projeto Hunsrik Plat Taytx, o programa idealizado por Ursula incluiu a formalização de um sistema de escrita, a inclusão da língua no currículo escolar a partir de 2017 e a publicação de materiais didáticos e obras literárias. O sistema foi registrado pelos criadores no Ethnologue, órgão responsável por catalogar as línguas do mundo e que serve de referência para organismos internacionais como a Unesco, braço das Nações Unidas para a educação. No ano passado, o Hunsrik foi incluído como idioma no Google Tradutor. Santa Maria do Herval oficializou o ensino do Hunsrik Divulgação/Projeto ALMA-H/UFRGS Até o momento, além de Santa Maria do Herval, pelo menos outros quatro municípios oficializaram o ensino do sistema Hunsrik Plat Taytx: Estância Velha e Nova Hartz, também no Rio Grande do Sul; e Antônio Carlos e Treze Tílias, em Santa Catarina. A pedagoga Márcia Fenner, de Santa Maria do Herval, relata que o Hunsrik faz parte do currículo da pré-escola ao 5º ano do ensino fundamental e, a partir desse ponto, é oferecido alemão padrão como língua estrangeira. Márcia conta que, quando fazia contação de histórias em uma escola do interior onde não havia creche, 90% das crianças que falavam hunsriqueano em casa ficavam indiferentes ao ouvir relatos feitos em português. De início, ela decidiu combinar as duas línguas mas, em seguida, passou a utilizar mais hunsriqueano. "A interação foi incrível porque quando se conta uma historinha ou piadinha em alemão, sempre parece mais engraçado", diverte-se a pedagoga. Professora de alemão e ex-secretária municipal de Educação de Santa Maria do Herval, Maria Rejane Schuh Kuhn opôs-se à implantação do sistema Hunsrik Plat Taytx durante sua gestão, em 2009. "As ações de preservar o hunsriqueano são importantes, mas o incentivo ao alemão padrão serve à conexão com a comunidade e os antepassados e abre muito mais portas [para o estudante] do que o dialeto", afirma Maria Rejane. Para Altenhofen, o desuso é fatal para o hunsriqueano e outras línguas minoritárias. "Essas são línguas de comunidade, que fortalecem o pertencimento, a identidade", afirma. Uma palavra hunsriqueana sintetiza essa dimensão afetiva: mottersproch (língua materna).

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